O momento é excepcional. Se há dúvidas sobre a melhor forma de enfrentar a pandemia, se lockdown, isolamento “horizontal”, “vertical” ou peito aberto, não há dúvidas de que a Covid-19 é gravíssima. A forma de contágio é eficiente, rápida, espalha-se pelo ar, uma parcela significativa dos contaminados precisam de internação hospitalar com equipamentos sofisticados. Um pequeno percentual da população contaminada que precise ser internada significa gastos exorbitantes para o estado com equipamentos, equipes médicas, instalações temporárias para atendimento emergencial e, acima de tudo, o custo moral e político de muitas vidas humanas.
O desafio é claro: como evitar ao máximo o aumento do número de pessoas infectadas e de mortos. E não se trata apenas de garantir saúde em sentido amplo (acesso, equipamento, medicamentos, tratamentos, etc.), mas também de proteger a vida. Nesse sentido, medidas adotadas visando diminuir o contágio (ao menos reduzir sua velocidade), como o fechamento de centros comerciais, de casas de shows, estádios de futebol, o impedimento de atividades não essenciais que impliquem aglomeração de pessoal, proibição do uso de equipamentos públicos de lazer, fechamento de praias, praças e boulevards, dentre outros, podem ser vistas como medidas que violam direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, como o direito ao trabalho, ao lazer e o de se locomover livremente.
A tomada de decisão do governo significa restringir liberdades individuais (exercício de determinada atividade profissional ou de livre locomoção), para proteger a saúde e a vida. Não apenas a saúde e a vida do indivíduo que prefira se expor ao risco, mas a saúde e a vida do outro que não pretenda se expor, mas fica mais vulnerável à medida que mais pessoas circulam e funcionam como vetores de transmissão. Não há dúvida de que tanto a vida, a saúde, como o direito de livre locomoção e o direito ao trabalho, são todos direitos humanos fundamentais, consolidados na Constituição Federal de 1988.
A proteção à vida[1], à saúde[2], ao trabalho[3] e à liberdade de locomoção[4] são garantidas por normas constitucionais. Normas essas que não são regras, mas princípios[5]. Os princípios, segundo Robert Alexy (Alexy, 2011), são mandamentos de otimização, vale dizer, indicam um ideal a ser perseguido sempre que possível e que poderá ser alcançado em diversas medidas. Um princípio, em conflito com outro, pode ser não atendido e isso não significa sua invalidade, nem que haja situação de exceção, mas apenas o reconhecimento de prevalência de um princípio sobre outro em determinada situação concreta.
No caso de uma pandemia que coloca em risco a vida e a saúde das pessoas, de forma temporária e excepcional, é de se esperar que sejam adotadas pelos governos medidas de enfrentamento que visem proteger a saúde e a vida e que sejam proporcionais a gravidade e igualmente temporárias. Nesse sentido, desde que as medidas sejam específicas, temporárias e proporcionais, é admissível que outros direitos fundamentais, como a liberdade de locomoção ou mesmo de trabalho sejam afetadas.
Algumas políticas como o fechamento de praças, de praias e a retirada a força de cidadãos têm causado polêmica, pois algumas pessoas têm resistido às ordens de deixar o local sob o argumento de que suas liberdades individuais são garantias constitucionais, proporcionando vídeos compartilhados à esquerda e à direita. Entretanto, o direito à saúde que ampara tais medidas também é de natureza constitucional, como bem asseverou o ex-ministro do STF Carlos Ayres Brito: “É possível extrair da Constituição diretamente essa ordem de ‘fique em casa’. Sobretudo no artigo 196, que estabelece a saúde como direito de todos e dever de União, estados e municípios. É um direito a ser garantido mediante a adoção de políticas sociais e econômicas que se voltem ao combate da doença, para viabilizar o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde pública. Isto está escrito com todas as letras. Não há outro modo eficiente de administrar a crise senão pela política de quarentena. Há sustentáculos para essa política pública a partir da Constituição brasileira? Há. E legitimam, portanto, essas políticas que vem sendo adotadas, não só no Brasil.”[6]
No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), adotou a Resolução 1/2020 em que aponta que as pandemias têm o potencial de afetar seriamente o direito à saúde, direta e indiretamente, devido ao risco à saúde inerente à transmissão e aquisição da infecção, a exposição do pessoal de saúde e a alta incidência na organização social e sistemas de saúde, saturando o sistema de atendimento de saúde em geral.
A própria CIDH reconhece que, no contexto atual, em qualquer país do continente americano, é possível a imposição de restrição às liberdades fundamentais, desde que tais restrições atendam aos requisitos estabelecidos no direito internacional e nos direitos humanos, em particular respeitando o princípio da legalidade, que as restrições sejam necessárias ao enfrentamento da pandemia, que sejam proporcionais e temporárias[7].
Observa-se que uma situação de pandemia, por sua excepcionalidade e por seu alcance, autorizaria, de fato, a subjugação de alguns direitos fundamentais em favor de outros. Não se trata de hierarquia, pois não há um direito que se sobreponha a outro; mas de vulnerabilidade, pois há direitos excepcionalmente em risco que, portanto, demandam ser protegidos de forma igualmente especial, temporária e urgente.
- Vide art. 5º, caput, CF/88.
- Vide art. 6º, caput, CF/88.
- Vide art. 5º, XIII, CF/88.
- Vide art. 5º, XV, CF/88.
- Sobre regras e princípios, ver Robert Alexy, 2014. Constitutional Rights and Proportionality. Revus – Journal for Constitutional Theory and Philosophy of Law, Volume 22, pp. 51-65.
- Matéria completa em O Globo, disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/e-possivel-extrair-diretamente-da-constituicao-essa-ordem-de-fique-em-casa-diz-ayres-britto-24372083, consultado em 16.04.2020.
- Vide Resolução CIDH 1/2020, disponível em http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf, consultado em 16.04.2020.
André Luiz Siciliano
Siciliano Sociedade de Advogados