Em 12 de junho de 2020 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, cujo objeto é o estabelecimento de um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (“RJET”), após tramitação no Congresso e sua sanção pelo Presidente da República, com alguns importantes vetos.
O presente artigo não tratará dos vetos, mas visa apenas trazer um panorama das principais matérias tratadas na Lei e seus impactos nas relações de direito privado.
Antes de adentrar nas questões mais técnicas, destaca-se que a Lei, como descrito no artigo primeiro, é transitória e, portanto, regula apenas as relações nela tratadas enquanto o país se encontrar em período de pandemia. Nessa linha, não altera ou revoga as leis cuja aplicação foi suspensa pelo Regime Transitório, que permanecerão em pleno vigor após o período estabelecido (artigo segundo). E a própria Lei estabelece os termos inicial e final dos efeitos da pandemia – respectivamente, 20 de março de 2020, data em que publicado o Decreto Legislativo nº 6 pelo Congresso Nacional, que reconhece o estado de emergência pública causado pela pandemia (artigo primeiro, parágrafo único), e 30 de outubro de 2020.
Sobre os efeitos do Regime às relações privadas, no Capítulo II, a Lei, em seu artigo terceiro, trata das hipóteses de suspensão ou impedimento da prescrição e decadência, estabelecendo que os prazos prescricionais estão suspensos ou impedidos, conforme o caso, desde a entrada em vigor da Lei (ou seja, 12 de junho de 2020) até 30 de outubro de 2020. E, mais adiante, esclarece que a suspensão ou impedimento também se aplica aos prazos decadenciais, o que, como regra geral, não é admitido pelo Código Civil (artigo 207).
Isso significa que, acaso o prazo prescricional ou decadencial devesse ter início no período determinado pela Lei ou estivesse em andamento, deverá considerar, para fins de cômputo do termo final, que seu início foi impedido ou que prazo foi suspenso neste período. Ou seja, o prazo não terá início ou “para” na data da entrada em vigor da Lei e seu cômputo deve ser iniciado ou retomado em 1 de novembro de 2020, conforme o caso.
Do Capítulo III, ao tratar das pessoas jurídicas de Direito Privado, prevê no artigo quinto que as assembleias gerais, incluindo-se as convocadas com inclusão em pauta da destituição de administradores e/ou alteração de estatuto poderão ser realizadas por meio eletrônico, garantindo-se a identificação do participante e a segurança do voto, que poderá ser externado por ele durante a assembleia e terá o mesmo valor legal de uma assinatura presencial.
Como se observa, trata-se de medida bastante salutar, na medida em que a não previsão da possibilidade de realização da assembleia virtual em estatuto, em tese, impediria sua realização. E sua validade, sem o dispositivo legal, poderia ser questionada judicialmente, não conferindo ao ato a segurança jurídica esperada.
Quanto à lavratura da ata e registro dos votos, o administrador pode fazer constar em ata os votos de cada participante e, ainda, gravar a assembleia para arquivo posterior.
Em relação aos contratos de consumo, o artigo oitavo da Lei disciplinou a suspensão do prazo de 7 (sete) dias para o arrependimento previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor quando se tratar de aquisição de produtos perecíveis ou de consumo imediato entregues por sistema de delivery.
Isso não significa, logicamente, que havendo vícios de qualidade ou quantidade dos produtos, o consumidor não poderá optar por uma das hipóteses previstas na legislação.
Apenas e tão somente o que está suspenso pela Lei é a condição resolutiva imotivada prevista no artigo 49, ou seja, possibilidade do arrependimento imotivado e sem qualquer penalidade por parte do consumidor, durante o chamado período de reflexão (7 dias).
O Capítulo VI (artigo décimo) trata do prazo de prescrição aquisitiva da propriedade mobiliária ou imobiliária por usucapião. A exemplo dos prazos gerais de prescrição e decadência, os prazos de aquisição da propriedade por usucapião foram suspensos desde a entrada em vigor da Lei até 30 de outubro de 2020.
No que concerne aos condomínios edilícios, a Lei estabeleceu que a assembleia condominial e a respectiva votação, inclusive quando a pauta for a destituição do síndico que pratique irregularidades, não preste contas e/ou administre de forma deficiente o condomínio, bem como a aprovação do orçamento de despesas, as contribuições de condôminos, a prestação de contas, eleição de substituto ou alteração do regimento, poderá ser realizada, em caráter emergencial, de forma virtual, “caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial” (artigo décimo segundo).
A mesma lógica de cômputo de votos das assembleias de pessoas jurídicas pode ser utilizada nas assembleias dos condomínios edilícios.
Por sua vez, a Lei flexibilizou os mandatos dos síndicos que se esgotem durante o período da pandemia (assim considerado pela Lei como de 20 de março a 30 de outubro de 2020), facultando a prorrogação do termo final do mandato até 30 de outubro, quando não for possível a realização da assembleia de forma virtual (parágrafo único, artigo décimo segundo).
E embora o síndico já tenha o dever legal de prestar contas de todos os seus atos de administração, o artigo décimo terceiro prevê a necessidade de prestação de contas regular dos atos do síndico sob pena de destituição.
O Capítulo IX trata da suspensão de eficácia de normas ligadas ao direito concorrencial. Em síntese, os atos praticados pelas pessoas jurídicas que seriam considerados infrações à ordem econômica, mais especificamente, a venda de mercadorias ou prestação de serviços injustificadamente abaixo do preço de custo, a cessação parcial ou total das atividades da empresa sem justa causa comprovada e/ou a necessidade de submissão ao CADE quando duas ou mais empresas realizam um ato de concentração caracterizado pela celebração de um contrato associativo, consórcio ou joint venture, não o serão no período de 20 de março a 30 de outubro de 2020 (artigo décimo quarto). No entanto, a suspensão da eficácia prevista na Lei não afasta a posterior possibilidade de análise dos acordos que não forem necessários ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia (parágrafo segundo).
Por sua vez, os demais atos considerados infrações à ordem econômica, deverão ter sopesadas as circunstâncias em que praticados quando da apreciação do órgão competente, de acordo com o parágrafo primeiro do mesmo artigo.
Ao tratar das áreas de família e sucessões, a Lei estabeleceu apenas que (i) a prisão civil por dívida alimentícia deverá ser cumprida em regime domiciliar até 30 de outubro de 2020 (artigo décimo quinto); (ii) o prazo de 2 meses para instauração do processo de inventário e partilha para as sucessões abertas a partir de 1 de fevereiro de 2020 se inicia apenas em 30 de outubro de 2020, e o prazo de 12 meses para o término do inventário iniciado antes de 1 de fevereiro de 2020 será suspenso a partir da entrada em vigor da Lei até 30 de outubro de 2020.
Sobre o cumprimento da prisão civil de forma domiciliar, inúmeras críticas vêm sendo feitas pelos doutrinadores. Isso porque a prisão civil é uma medida de coerção e, caso o devedor seja mantido em prisão domiciliar, em especial em um período em que boa parte dos brasileiros está em casa em função do alto contágio do vírus causador da pandemia, a prisão não surtiria qualquer efeito. Por outro lado, a reclusão do devedor o exporia ao contágio, o que não parece ser a melhor alternativa. De todo modo, essa foi a opção do legislador.
Em relação ao prazo de instauração do processo de inventário, a discussão gira em torno da suspensão da exigibilidade do pagamento do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis, regido por regras estaduais e que, em tese, não estariam abrangidas pela dilação do prazo para instauração do procedimento de inventário. É possível, no entanto, que se entenda que, uma vez que o pagamento do tributo depende da instauração do inventário, estaria o prazo para recolhimento igualmente estendido. Por enquanto, uma vez não definida a questão, e uma vez que o não pagamento no prazo sujeita o contribuinte ao pagamento de multa, parece-nos mais prudente alertar ao cliente sobre a possibilidade de aplicação de multa caso o entendimento que se consagre seja no sentido de que o recolhimento do tributo não teve o prazo dilatado.
Por fim, o artigo vinte da Lei prorrogou a entrada em vigor dos artigos 52, 53 e 54, da Lei Geral de Proteção de Dados, que tratam das sanções administrativas aos agentes de tratamento de dados, para 1 de agosto de 2021.
Como adiantado, a Lei deixou de tratar de diversos temas bastante sensíveis, seja pela não aprovação no Senado ou na Câmara, seja pelos inúmeros vetos apostos pelo Presidente. Deixou, por exemplo, de tratar questões relativas às locações comerciais, como eventuais descontos de alugueis e assessórios, quando cabível, e/ou parcelamentos a estabelecimentos fechados em função dos decretos de calamidade e não consideração da atividade como essencial, a exclusão da possibilidade de parcelamento de alugueis nas locações residenciais, de impossibilidade de despejo liminar em locações residenciais, dentre outras.
Todas as questões não abordadas pela Lei, contudo, continuarão sendo tratadas de forma casuística, quando levadas à apreciação do Poder Judiciário, recomendando-se sempre a observância dos ditames de boa-fé, confiança, colaboração e a preferência aos meios alternativos de solução de controvérsias para se chegar a uma solução pacífica dos problemas decorrentes da pandemia e seus efeitos.
Aline Trombelli Oliveira
Siciliano Sociedade de Advogados